quinta-feira, 12 de junho de 2014

Um vislumbre "crítico" da crítica, na parcepção de Julio de Morales.

                    CARTA  ABERTA DEMÓTICA

Julio de Morales e sua visão assombrosa sobre arte, uma eterna discussão. Política?

O que se passa na cabeça de um jovem quando contempla a
arte? Ninguém sabe, ninguém imagina. Os sentimentos e os
pensares são plenos e legítimos.

             A “crítica” recomenda visita a essa ou àquela exposição, segundo o grau de importância prescrito pela escala subjetiva. Intriga observar que só recomenda as “grandes”, e isso de duas maneiras, elogiando ou depreciando; em ambos os casos, o convite é feito, atendendo à expectativa de mencionar o que deve ser visto, mesmo quando são assinaladas as deficiências. O cumprimento dessa subserviência planejada subestima a necessidade de dedicar algumas linhas ao que, sem deficiências gritantes, merece atenção e análise. O termo “grandes“, aqui, remete às mostras endossadas por instâncias notórias (as bienais, as documentas, por exemplo) capazes de decidir o futuro profissional da crítica – e a sua sobrevivência (leia-se adaptação servil) estará garantida na medida em que souber satisfazer as pressões locais de onde recolhe referências e indicações para ajustar seus interesses infinitesimais, que gravitam bem abaixo da órbita das motivações explicitas.
            É verdade, nos dias de hoje já não associamos mais a “crítica” à iniciativa pretensiosa de desenvolver um ofício neutro, incumbido de uma missão inequivocamente séria, pondo em ação atributos intelectuais avantajados e um acervo de informações relevantes em condições de avaliar criteriosamente o alcance, a contribuição e os limites das obras de arte e das intenções dos seus autores. A “crítica”, para qualquer um que ainda associa essa palavra ao mundo artístico, é o promoter disponível, estimulador de artistas e instituições, apresentador midiático, carregando um discurso articulado, algum conhecimento de história da arte (história criada por outros promoters, economicamente mais fortes, que não podem ser simplesmente desmentidos por terem já consolidado sua posição, o que faz do seu prestígio uma refutação conclusiva a todo questionamento periférico – não deixa de ser curioso observar que são basicamente dois os requisitos imprescindíveis para essa superioridade: uma produção contínua carregada de informações extensas (não necessariamente precisas e inquestionáveis por resultarem de interpretações) e a habilidade para nos fazer acreditar que a canonização de um ou outro artista se deve à evidência do talento e não às estratégias dos interesses em jogo) e uma poderosa, mas evasiva, influência. Uma influência bizarra, é verdade; bizarra porque, sem precisar acreditar no que declara, acredita na relevância da sua posição, na fatalidade da sua contribuição. E muitos artistas (os de mentalidade precontemporânea, em primeiro lugar) agem em relação à crítica como se, para acreditar nas qualidades que não têm, precisassem atribuir a alguém, que consideram por conveniência um intelectual gabaritado, a capacidade de identificar neles atributos singulares, que o público deve conhecer. De fato, desde que o discurso moderno se tornou científico passou a ser uma tentação posar de instância neutra e sabedora, extrartística de preferência, encarregada da aplicação de critérios apreciativos tão precisos e objetivos como a descrição de um fenômeno subtômico.     
           Hoje, é comum argumentar que não é esse o verdadeiro interesse da “crítica” de arte ou dos jornais de divulgação, os que são dela o estacionamento privativo. Declara-se que há muito tempo seu objetivo é formular não um parecer neutro e científico, mas um julgamento circunstancial, filosófico e interessado. Mas, ora, se é assim, endossa-se o papel da “crítica” na reserva de pauta de exposições (espaços privados e públicos, hoje, exigem que a  “curadoria” – outro nome da “crítica” – subscreva a proposta de exibição), na indicação das mostras valiosas e, enfim, – o que é mais obsceno – na confirmação do valor dos “monstros
Quando amor e desejo se tornam arte...
sagrados“, mascarando cuidadosamente os mecanismos de seleção e promoção viciados, que forjam os “talentos”. Habitualmente se diz que as grandes mostras patrocinadas por instituições vultosas lançam modas periodicamente. Qual a razão disso? O “repórter especializado” (outro nome da “crítica”) foi testemunha ocular de uma idéia ou desempenho espetacular, que a sua inegável experiência no assunto considerou paradigmático? É tolice tentar deixar de mencionar a operosa malha de influência que esses personagens intrartísticos teceram para melhor impor a orientação estética, política que leva sua marca. Uma boa prova disso é a moda das instalações. Quem já presenciou um “repórter-crítico” assinalando que as instalações já existem desde a Antiguidade,  como, diga-se de passagem, toda a arte moderna? De fato, a arte moderna foi um inacreditável retorno à arte primitiva, segundo o dogma (que o Dadaísmo transformou em ações concretas) da infantilização das intenções artísticas [ao lado da debochada imbecilização do público, ditada pelo niilismo intelectual, estupenda força reacionária que procurou, por razões românticas – e ainda procura – fazer do mundo artístico o “mundo paralelo” (o mundo-asilo de Huymans, o mundo-ilha de Crusoé, o mundo-origem de Nietzsche, o mundo-símbolo de Mallarmé, o mundo-selva do Dada) avesso ao público (daí o pânico da vulgarização) e de costas para o artificialismo da sociedade industrial – atitude que deixou à vista as prerrogativas da mística naturalista que animou esse retorno à vida primordial: abandono dos ditames cifrados da arte “acadêmica” (termo amplamente usado pelos modernistas para depreciar uma arte que se ocupava da “beleza artificial” – como se conceber uma beleza natural não fosse um ato artificial !)] em busca de uma vida mais autêntica, provavelmente como a arte adâmica ancestral, tão pura e espontânea como a das cavernas de Monte Alegre e de Cosquet. Abandono, portanto, do mundo moderno, do capitalismo e da cultura tecnológica. Não seria escandaloso dizer que, sendo assim, os modernistas foram tudo menos modernos. E por que ainda hoje são tomados como inventores sofisticados, como libertadores da arte? Estratégia do consenso? Mesmo contra a obviedade das provas em contrário? Isso nos faz pensar que, se a suposta experiência da “crítica”, do “repórter-crítico” teve nesse contexto alguma utilidade, foi justamente a de encobrir à força de prestidigitações corriqueiras a verdadeira natureza da “revolução” modernista, ou seja, o fato de ser uma obscura e hermética contra-revolução, um golpe naturalista no edifício artificial da cultura “acadêmica”. Ora, nada é mais artificial do que a cultura metacontemporânea, cultura das imagens ilusórias e perfeccionistas, por isso estamos – os que se sentem comprometidos com o tempo presente – muito mais próximos dos acadêmicos, do virtuosismo, das suas ilusões de ótica do que do realismo infantil dos modernistas. Somos artificiais num mundo artificial, onde a pureza das crianças (para a grande decepção do Dada) se revela bem melhor como a esperteza do perverso polimorfo.  
As vezes, mergulhar no conceito é necessário
para arejar a percepção.
            Quem já presenciou um “comentador” de exposições declarar que os objetos artísticos achados ou elaborados são a primeira invenção das hordas primitivas? É inegável que, assim como os românticos herméticos os tomam como pretextos para mobilização das forças irracionais, os humanos ancestrais os utilizavam como símbolos de um poder sobrenatural. Nada é mais antigos que os “objetos” artísticos; disso são exemplos as peças arcaicas da arte etrusca, egípcia e brasileira. Argumentar que tinham prioritariamente função religiosa nem retira delas o caráter de obras que encarnam a beleza regulamentar, nem garante inequivocamente aos objetos artísticos modernistas o título de artefatos inéditos. ?E, quanto às instalações? Entrar na construção artística, como se fez num castelo medieval muito mais adornado do que caixas minimalistas, interagir com a obra de arte como o guerreiro manuseava sua espada ricamente enfeitada, devorar uma peça artística como era comido um jantar renascentista ou um simples pão, e, enfim, se revestir com obra, como desde tempos imemoriais se faz com a indumentária, são atos realmente inéditos? É com essa palavra que se justifica insistentemente a necessidade da arte de hoje ser feita desse modo, predominantemente, como um imperativo irrecorrível. Tudo que não tolera esse enquadramento é de pronto considerado ultrapassado, tradicional, unilateralmente. Mas, há algo mais tradicional do que o que tem a idade da História e da Pré-História? O ato de costurar um vestido velho e expor na parede da galeria de um amigo com amplo trânsito na imprensa constitui uma inovação? E expor um quadro pintado com zelo virtuosístico não? Ora, representar a realidade com preocupações miméticas é tão arcaico quanto produzir uma indumentária ou uma arma sem o intuito de replicar o mundo objetivo, a não ser que se pense que uma pedra lascada ou tanga de pele imita o mundo exterior. Não assusta nem surpreende que a perspicácia “crítica” possa ser posta a serviço do simplismo ou da enganação, porque só a esse título ela pode se arvorar metacontemporânea, isto é, artificial e ilusória. Surpreende a sinistra e prosaica facilidade com que sua propaganda forja prosélitos interessados em cultivar o que a torna francamente incompatível com a mentalidade metacontemporânea: seu programa antidemocrático.
O que se pode dizer sobre a legitimidade da arte? Só o ato
criativo nos justifica, a obra já não importa mais. Será?
         Nada a opor à moda das instalações. Modismos são desejáveis, dinamizam e, sem bem conduzidos pelo bom senso liberal (o que deve ser um escândalo no mundo da arte, que tem muito mais apreço pelas paixões totalitárias e obscurantistas), fortalecem o interesse pela produção cultural. O retorno delas – após terem sido eclipsadas por muito tempo  pela pintura – ou ainda, sua proliferação (uma vez que sempre existiram, mas em pequeno número – veja-se o caso dos biombos chineses e o das urnas funerárias tapajônicas) veio enriquecer mais ainda a pletora da produção artística atual, onde se destacam esculturas móveis, pintura experimental e teleológica (ao lado da pintura experimentalista e aleatória), a arquitetura poliforme, a gravura digitalizada, a culinária global, a medicina plástico-molecular etc. Mas, falar da “espacialização na arte”, fenômeno de expansão e de ocupação observado na arte em todos os tempos (a arquitetura, a decoração, a arte do mobiliário, a macropintura, a arte mortuária, a escultura gigante), é mais do que uma pobre falácia, é um forte indicador de como se tornam coletivas as palavras de ordem dos modismos programados, os modos de pensar unidimensionais (mas, afinal, não são justamente os artistas que mais protestam contra a obsolescência programada, imposta pelo capitalismo selvagem, desumano e excludente?). Esses modos unificados emergem a partir de consensos informais, imediatamente consagrados por programas culturais clonados, que se multiplicam com incomparável rapidez e se tornam hegemônicos com a colaboração  das forças que atuam nos bastidores. Tais forças – alguns artistas investidos de funções administrativas (artistas, é bem verdade, não deveriam fazer parte de bancas examinadoras a apreciar trabalhos de outros artistas, posto que são concorrentes capazes de formar cartéis contra os não alinhados às suas propostas estéticas e políticas), pesquisadores de arte (isto é, gente “do meio”) e “críticos” (titulares de colunas jornalísticas) – são responsáveis pelos procedimentos de inclusão e exclusão, modelando furtivamente as condições de promoção das “personalidades” ou idéias preferenciais e condenando à categoria de coisas antigas – de peças obsoletas, de idéia tradicional – tudo que foi arbitrariamente vetado pela “nova” ortodoxia. Mesmo aqueles que aprovam como inevitáveis os modismos avulsos não têm nenhum argumento em condições de camuflar o dirigismo que insiste em configurar o mapa das biografias relevantes em arte ao preço da excomunhão das vozes dissidentes. O circuito artístico permanece ancorado nos consórcios supostamente esclarecidos que favorecem os protegidos em detrimento dos sem-cobertura, cumprindo cinicamente a fórmula bíblica pela qual “Muitos serão chamados, mas poucos serão escolhidos” (a versão mais recente dessa fórmula neoaristocrática se refere ao misterioso caso da compra de obras de artistas “consagrados” por parte de um renomado instituto público com a intenção de “ajudar” a incrementar o mercado e “formar acervo”. Ora, quem fez a lista de “eleitos”? Houve concorrência, licitação? Não deve haver para essa modalidade de aquisição? E, se um agente público decidir comprar pias sanitárias, terá de fazer licitação? E pias sanitárias não são objetos artísticos?). Uma verdadeira traição às aspirações daqueles que engrossaram a promessa de uso público dos espaços públicos, financiados com recursos fiscais e administrados pelas ordenanças de partidos políticos com compromissos coletivos declarados. O juízo de valor é subjetivo, todos sabem, e juízos de valor de um staff de déspotas esclarecidos só aumentam seu coeficiente de arbitrariedade. 



A ação autoritária não diminui se distribuída, apenas recrudesce, ampliando seu poder de cooptação e seduzindo segmentos da sociedade que deveriam estar interessados na denúncia incondicional de procedimentos injustificáveis (talvez por isso o melhor slogan não seja tanto “liberdade de imprensa”, mas liberdade na imprensa, com o direito de réplica, de denúncia independente, de contestação desfechada por quem não dispõe de grande poder relacional, isto é, não é “do meio”). Formar comissões “imparciais” para, no âmbito de instituições públicas, militarem em prol de “pesquisas em sintonia com a produção contemporânea nacional e internacional” é uma postura ardilosa contra a liberdade de expressão. É provavelmente por isso que algum tipo de ingerência particular, tendenciosa e direcionada – com suas decisões tomadas, seu sucesso comprovado – vem se instalar, justamente ali onde sua participação é, por princípio – sobretudo no que se refere à nomeação dos “protegidos” – definitivamente dispensável. Recorrer, por outro lado, à legitimação pelo discurso enciclopédico com feitio forçadamente técnico, fornece apenas um arremate intelectual ao descaramento da discriminação, da seleção subjetiva, corporativa, com ares de escolha séria e rigorosa. Se para a grandeza da cultura artística local é necessário encomendar dos “especialistas” em redigir prefácios e biografias intelectuais a apologia de alguns afiliados “talentosos”, de alguns apadrinhados notórios (?isso não representa o equivalente artístico do nepotismo político?), então chegou a hora de dirigir contra o mundo das artes a delação sistemática (outros diriam o “estranhamento”, um procedimento que nenhum filósofo jamais tomou para perscrutar, com pinças dialéticas ou genealógicas ou mesmo arqueológicas, os arcanos nada metafísicos do mundo artístico) que desde o início do século XX todo bom revolucionário romântico (miseravelmente em busca da utópica autenticidade) dirigiu às demais manifestações de poder – e que, por mais cômico que pareça, ajudou a criar (ou recompor ?) essa cultura do compadrio, que impera com extrema parcialidade em todas as zonas do circuito artístico. Agora, é justo que ela prove do veneno com que, obtusa e extremófila, aniquilou seus antecessores. Vale considerar esse cenário com um pouco mais de atenção.

Estamos vendo ou estamos sendo vistos? Neste caso, quem nos olha?
        Em primeiro lugar, nunca houve por parte dos precursores das vanguardas modernas o real interesse pelo desmonte da rede de relações que constitui a infraestrutura amiguista dos espaços públicos para exibições artísticas. Sua luta envolveu apenas a transposição dos limites do que se considerava arte, tendo desde então que incluir um conjunto de produtos “ordinários” próprios das sociedades industrializadas. A luta girava em torno do que se chamava arte, e não em torno dos mecanismos efetivos de seleção e promoção, nem sobre a relação promíscua e clandestina dos interesses privados e espaços públicos. Não há uma única linha escrita pelos modernistas sobre a influência do poder relacional para o triunfo da sua causa. Também não há um só comentário dos posmodernos sobre essa mão providencial que do seu posto de comando define competências (a partir das “evidências” que distinguem os “inovadores”) e indica o que é atual e relevante, de um lado, e tradicional e obsoleto, de outro.  Aí está um fato sobre o qual muitos pensam que é melhor se calar. Eis o interdito, um assunto que treme à menor indiscrição (doravante teremos a oportunidade de saber se permanecerá intacto sob o assédio da incontinência verbal !). E sequer é levada a sério a sugestão de que essa inoportuna denúncia pode constituir uma irreverente operação artística destinada a eviscerar  esse velho modelo de promoção em vigor também nos espaços públicos. Afinal, o que temem os que se aninharam no prestigio da vida artística com a colaboração de seus amigos influentes? Como ignorar o temor dos que patrocinam eventos artísticos de inquestionável importância para a cultura visual e que sabem que por eles grassa uma insuportável injustiça como condição da sua possibilidade? Injustiça, não em relação a um ou outro pretendente excluído, mas em relação à necessidade de ser implantada outra prática de consagração no mundo artístico, que comece pela igualdade de acesso aos espaços públicos.
 
Qual o discurso da arte que realmente interessa?
     Nos primeiros anos da Pop Art norte-americana, filha ingrata da Pop Art inglesa (extensão das propagandas comerciais das primeiras indústrias européias), um repórter nova-iorquino se deu ao trabalho desconstrutivo (prolongando assim a tradição do contradiscurso que desmascara ídolos, desde Aristófanes, e para além dele) de descrever, com incontrolável indiscrição, o funcionamento da máquina de fabricar celebridades no mundo das artes visuais da capital cultural norte-americana. Sua intenção foi flagrar o acordo subterrâneo que dividia os papéis, atribuindo, por um lado, à horda de artistas desorientados a nobre identidade de personalidades difusas, intuitivas, enigmáticas à espera de um olhar atento e sábio (o “olhar sensível”, que as multidões ignorantes e os burgueses medianos não tinham), e reservando aos “críticos”, por outro lado, a incumbência de explicar, por meio de um solidário discurso épico, o sentido das obras em foco. O repórter chamou a esse conluio de “A Palavra Pintada”. Com as vísceras agora expostas, a sociedade dos companheiros funcionava nos seguintes termos:  “críticos”, ou melhor, “agentes culturais” (promoters “sensíveis” e visionários com postura intelectual à altura da sua condição pequeno-burguesa) recrutavam artistas do exército urbano de reserva com base em laços de amizade ou segundo alguma indicação de outro amigo também “critico”. O passo seguinte era projetar a produção dos artistas “selecionados”. Com a boa consciência de ajudar  o mundo a abolir o regime da arte “acadêmica”, esses escribas apologéticos produziam textos analíticos (promoters por definição não produzem textos críticos, no sentido restritivo da palavra, a não ser para quem não é um aliado. Em algumas bienais é comum o conclave de críticos vetar artistas que mais tarde serão chamados por outros críticos, que os consideram exemplares. Não se trata de divergências teóricas, mas de oposições enraizadas na luta pelo poder e em sentimentos “baixos” próprios das “multidões ignorantes”, “insensíveis”, “inautênticas”.) embasados em pontos de vistas filosóficos, em análises histórico-comparativas, na erudição disponível de professorado e na retórica elitizada, tudo isso  com o objetivo de dar ao público a possibilidade ver o que só eles  viam. Não é supérfluo observar que a formação e o funcionamento desse plano de promoção de “gênios” teve como suporte o poderio econômico que a América do Norte então ostentava. A conclusão é inevitável: a riqueza material do país encorajou a reprodução local do esquema europeu de promoção, deixando, para os  filósofos da arte, a tarefa de justificar a importância
Manu Contemporânea no CCBB - 2014
da produção artística dos seus afiliados. O escopo do repórter foi trazer à tona como importantes “criadores” visuais são fabricados, editados, melhorados pelo palavrório intelectual. Mas o fato de mencionar o conteúdo dessa reportagem não tem, aqui, o intuito de encorajar indiscriminadamente a depreciação do valor dessa máquina promocional. Ela é perfeitamente cabível no domínio privado. A referência a ela é pretexto para revelar como gestores de espaços públicos parasitam os produtos dessa estratégia particular, como imitam despudoradamente esse modelo, privatizando galerias que, por principio, deveriam ser destinadas ao acesso amplo e irrestrito, em vez de estarem progressivamente se transformando em verdadeiros reservatórios para artistas “consagrados” por galerias particulares. O esquema, então, se especifica: o ”crítico” consagra uma personalidade “difusa” e “superior” (que apresenta um tema “fundamental” para nossa cultura, as metáforas, as citações, o glamour)  com sua influência consegue, sem problema, abrigo nos prestigiosos espaços públicos;  esses, por sua vez, balizam suas preferências pela “qualidade” da mostra do artista em questão. Diga-se de passagem, não é por outro motivo que todos os museus que criam propositadamente embaraço ao acesso público à sua pauta, estampam com todas as letras, no  protocolo de funcionamento, a exigência de “qualidade” (?a mesma qualidade dos neodadás, que derretem borracha, pintam pedaços de madeira velha, expõem pranchas enferrujadas como metáforas matéricas dos fluxus temporais ? Provavelmente igual àqueles que penduram trapos, como variantismo aplicado ao suporte (embora todos saibam que o que mais variou na arte “tradicional” foi o suporte, começando pela superfície calcária, passando pela argila, ossos,madeira, porcelana, tela de algodão, vidro etc).



Auto da Compadecida, concepção arrojada, teatro
arejado e ultratual!


Com um pouco mais de cinismo poderiam afixar de antemão, nas suas portas, a palavra RESERVADO. E por aí se vê que estamos diante de um círculo de viciados:  artistas “consagrados”, que o “esquema” consagra, o “crítico” com seu poder relacional e os museus públicos com sua reserva compulsória e clandestina. Nada mais antidemocrático, nada mais passível de ser emudecido, de permanecer fora do rol dos assuntos prioritários das filosofias da arte. Mesmo em tempos de crítica arqueológica, esse é o tipo do achado subterrâneo que um cúmplice obstinado faria questão de voltar a enterrar. De fato, a modernidade invadiu o mundo artístico para ampliar o conceito de arte e para jogar fora preocupações estéticas de natureza inferior à sua politização. Fez mais, explodiu o critério de identificação do que era artístico. Mas ficou nisso, na superfície, ato que, por sinal, delata seu limite, indicando que todo seu interesse residia na mera substituição de procedimentos e não na revelação da
Manu, inquieta...
trama do poder relacional escorando personalidades artísticas “singulares”. O projeto modernista pretendia a dissolução do status de artista, mas apenas para incluir o maior números de seus amigos “transgressores” (os borradores, os lixistas, os larvistas, os caricatureiros, os parangolesistas etc), mas temia visceralmente a “vulgarização” da arte. Todos são artistas, era o seu lema, mas os “eleitos” pelo poder relacional, isto é, os “relevantes” são poucos. Aí reside justamente o truque inconfessado do modernismo elitista: democratizou a palavra artista quando deixou de ter importância e passou a fazer crescente uso sub-reptício da noção de “representante” e seus derivativos: selecionados, fundamentais, paradigmáticos, incluindo aí a expressão mais superficial do vocabulário artístico moderno: a palavra radical. Conclusão: todos fazem arte (porque já não há mais artistas !), mas poucos são radicais, poucos têm qualidades, poucos serão salvos. Superficialidade, contradiscurso pessimista, práticas antidemocráticas e uso privativo do patrimônio público (não esquecer que a Bienal brasileira é regada com dinheiro público!), eis a herança modernista, que a elite econômica, política e pseudo-intelectual insiste em conservar. A arte não viveria sem essa astúcia? A seleção tendenciosa resulta da assimetria natural dos poderes relacionais em jogo? Não se pode exigir transparência no mundo das artes visuais sob pena de comprometer seu poder mitológico? Aí está o que doravante precisa ser provado, e não é delírio acreditar que esse sangrento processo, que ora se instaura, venha consumir os primeiros anos da formação de uma mentalidade metacontemporânea.

A arte respira entre os dedos e nada mais!
Aqui, neste outro mundo, livre dos preconceitos modernistas (livre de uma liberdade subabstrata, mas nunca realmente real), os artistas estarão, quando quiserem, entregues a si mesmos com, digamos o passe livre; dependerão, também se quiserem, da sua própria publicidade; terão de se tornar mestres da autopromoção (e não do conchavo), terão acesso aos espaços públicos por sorteio ou ordem de chegada (e não com base no “prestígio” que a própria instituição, num ato de reconhecimento premeditado, ajudou a fabricar). Esse é a único modo de neutralizar o poder de comitês de seleção interessados em impor preferências que, só para eles, preenchem os requisitos de “sofisticação intelectual” ou “inovação estética”; único modo de estimular o jogo de talentos em competição, o laisser passer. Não é difícil concluir que o intelectualismo em arte teve o mesmo efeito do mitologismo que, no passado, consagrou “gênios” com base na ampla popularidade e não na suposta capacidade de solucionar “intricadas” equações estéticas. Em outras palavras, se foi possível alcançar notoriedade sem precisar posar de executor de façanhas intelectuais, então aí está mais uma forte razão para  deixar as possibilidades aflorarem em contextos de livre concorrência, sem a presença de entraves tendenciosos. Em bienais e documentas, “críticos” recrutam seus preferidos (as “bolas da vez”), segundo suas perspectivas e interesses imediatos. Ali, reinam os lobbys, que vão definir tendências. Mas, empregar esse modelo bastardo para gerir o uso dos espaços públicos está muito longe de consubstanciar uma percepção do ambiente metacontemporâneo em todas as sua dimensões. Antes, representa um retorno ao modernismo sectário, um retrocesso. Fomentar, portanto, nesses espaços, o emprego de estratégias de equalização de acesso (sem temer que a igualdade leve à mediania, posto que só nivela condições e não capacidades de invenção), é a grande tarefa dos nossos dias, que terão de ver acontecer tudo - tudo que mais tarde poderá estagnar ou crescer com exuberância.     
 

                                   Julio de Morales